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Joao furtado

Com licença da carta-testamento de Getúlio Vargas, mas o empresário amazonense João de Mendonça  Furtado também “saiu da vida para entrar na história”. Presidiu a Federação das Indústrias do Estado do Amazonas (FIEAM) por três mandato (18 anos), foi prefeito de Manaus, membro da diretoria da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e um mais ferrenhos vigilantes  defensor da Zona Franca de Manaus.

Furtadão, como era chamado por aqueles que o conheciam, nasceu em Tarauacá (AC) no dia 20 de outubro de 1919. Logo, se vivo estivesse, estaria completando  100 anos neste 20 de outubro de 2019, quando escrevo estas mal traçadas linhas. João morreu, aos 86 anos  longe do Amazonas que tanto amava – no Rio de Janeiro, no dia 18 de Janeiro de 1995.  

João era autodidata, mas lia muito e era um empreendedor ousado para o seu tempo. Foi um dos fundadores da FIEAM, em 3 de agosto de 1960 ao lado de Abrahão Sabbá, seu primeiro presidente;  e Antônio Simões, o segundo. João foi o terceiro e  fez um trabalho tão intenso que quase não sai mais. Construiu o Clube do Trabalhador, uma obra grandiosa fossa toda em concreto, que na época os críticos diziam que era uma “obra faraônica desnecessária” e o tempo mostraria que não –, o prédio da FIEAM, na avenida Joaquim Nabuco, a sede do Senai, na Bola da Suframa. Estendeu também os serviços  do sistema  S (Sesi e Senai)  para o Acre, Roraima e Rondônia.

Quando percebeu que  os jovens que moravam nos barrancas da Amazonas não tinham o horizonte de uma profissão, por não acesso à escola, mandou construir o navio escola Sumaúma, que era a “menina dos olhos” de sua administração.

Furtadão não tinha papas na língua. E falava olhando nos olhos do interlocutor. Era capaz de interromper o discurso de um ministro se esse começasse a criticar a Zona Franca ou do Amazonas. Não estava nem aí para partidos políticos.

— Eu voto nos homens e não em siglas – avisava. Embora pertencesse à Aliança Renovadora Nacional (Arena), o partido da ditadura, apoiou Gilberto Mestrinho, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido da oposição, quando este, cassado pelo golpe em 1964, retornou em 1982  para se reeleger governador do Amazonas após o processo de anistia ampla, geral e irrestrita.

Fez o mesmo quando as Diretas não passaram no Congresso, em 1985, e as eleição do novo presidente seria no Colégio Eleitoral. O PDS, contra a vontade do general João Figueiredo – que gostava mais do cheiro do cavalo do que do cheiro do povo –, elegeu na convenção Paulo Maluf (PDS-SP). Mas Furtadão enfrentou  os caciques  e declarou seu voto em Tancredo Neves (MDB).

— Nunca engoli sapo. Não seria agora, depois de velho, que vou engolir!

Quando o então prefeito José Fernandes de se desincompatibilizou  para disputar a convenção do PDS, que indicaria o candidato ao governo na primeira eleição direta para o governo dos Estado, Furtado foi indicado pelo governo para assumir o mandato tampão. Na primeira semana em que sentou-se na cadeira de prefeito  disse uma frase que entrou para a história, traduzindo muito bem o “abacaxi” que estaria em suas gigantescas mãos.

— Manaus só tem um problema. O problema é Manaus inteira!

Dois anos depois, na cerimônia de posse de  Amazonino Mendes, indicado prefeito pelo vitorioso Gilberto, Furtadão deixou o microfone aberto e muita gente ouviu a frase que ele achou que estava somente murmurando, ao apertar a mão de seu sucessor.

— Quero ver se tu tens colhões roxo agora, Negão!

João tinha um vigor físico de fazer inveja. Mesmo depois dos 68 anos, conserva um bom físico e uma energia impressionante, mesmo não tendo o habito de fazer ginásticas – as academias ainda não estavam na moda. Dormia em média quatro horas por noite e trabalhava como se fosse “movido à energia atômica”, como dizia um antigo assessor, o então radialista, hoje advogado, Luiz Eduardo Lustosa de Oliveira. Luiz. Também não tinha o hábito de beber.   Raramente bicava uma ou duas doses de whisky nos dias de festa, quando a cozinheira, D. Eurides, preparava a caldeirada de tucunaré ou o picadinho de tambaqui, seus pratos preferidos.  Não fumava cigarros, mas, vez por outra, dava umas baforadas no bom charuto cubano, Cohiba.  Paletó só colocava nos dias de solenidades. No dia-a-dia usava o safari de linho, quase sempre nas cores, cinza, cáqui ou azul.

Rico, leva uma vida simples: com frequência come de marmita, às vezes, degustando um prato que ele mesmo indicou, pelo telefone, para que a mulher preparasse.

Ao assumir a prefeitura de Manaus, em 1980,  surpreendeu muita gente quando se recusou a receber o seu salário, doando-o, enquanto estivesse no cargo, a uma casa de amparo à velhice. A madeira usada nos andaimes e tapumes das obras da Prefeitura, ele doou as pobres para construírem suas casas. Quem conviveu  com João sabe que ele era um homem de atitudes muito próprias, personalidade forte, brigão, às vezes, aparentemente, duro, mas no fundo uma pessoa compreensível, humana. Quando completou 69 anos, fui escolhido para homenageá-lo, afinal, era seu assessor desde 1979 –, num almoço com os funcionários. Tentei   traduzir a personalidade forte de Furtadão, lembrando com irreverência que 69 era uma “idade sugestiva”. Ele entendeu a piada e até riu. Encerrei lendo os versos da canção “João Valentão”, de Dorival Caymmi, que tão bem traduzia o espírito do nosso João.

—    João Valentão é brigão /Pra dar bofetão / Não presta atenção/ E nem pensa na vida/  A todos João intimida/ Faz coisas que até Deus duvida / Mas tem seu momento na vida…

A música de Caimmy era a cara de João Furtado, que  tinha fama de brigão, mas tinha um coração do seu tamanho. E a música dizia isso no último verso:

— E assim adormece este homem/ Que nunca precisa dormir pra sonhar / Porque não há sonho mais lindo / Do que sua terra não há!

Quando terminei, olhei para o “João Valentão”, que tinha fama de durão, e seus olhos estavam inundados de lágrimas.

Nos dias de festa, em que arranjava um tempinho para jogar conversa fora e tirar o charuto do bolso do blusão, João também costumava declamar o trecho de uma poesia que sempre lembrava – mas nunca revelou o autor –,   uma clara referência à morte:

— Não existe coisa mais triste/ eu lhe digo com certeza/ do que os olhos de um moribundo/ fitando uma vela acesa…

Nesses dias, João dizia abertamente que “que quando eu morrer, quero ser velado de pé.”

—  Coloquem meu caixão em pé. Não quero nenhum  filho da mãe me olhando de cima pra baixo!

Sua vontade foi cumprida. O primogênito, Haroldo Furtado, mandou que o caixão fosse posicionado na vertical.  

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